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Catadora de histórias, Eliane Andrade, Interlagos/SP 2011 |
(Artigo publicado originalmente na revista Conceição vinculada ao PPG Artes da Cena IA/Unicamp)
Resumo: Como desdomesticar a relação corpo e cidade? A
partir desta questão o presente artigo procura realizar uma leitura crítica das
implicações éticas, estéticas e políticas da experiência corporal urbana
contemporânea. Para tanto, propõe o artista da performance como errante urbano
e a arte da performance como errância urbana.
Palavras chave:
corpo, performance, cidade.
O que seria a união entre ética e estética,
sem a política, senão uma exaltação do indivíduo? Como se arriscar na
associação entre a estética e a política, sem a ética, depois da terrível
experiência nazista? Por que insistir na relação privilegiada da política com a
ética, sem a estética, após o enfado dos últimos anos na trajetória da
esquerda?
Tatiana Roque
“Tenho muito o que fazer. Preparo o meu próximo erro.”
Bertold Brecht
Uma história de performance
Ou
Uma história solta,
Um homem com traje
social amarra uma corda no colarinho de sua camisa e lança-a em meio aos corpos
de passagem pelo centro de São Paulo. Três crianças se aproximam, puxam a corda
e levam o homem para passear pela rua Direita, em seguida, tentam adestrá-lo.
Vendedores ambulantes intervêm. Crianças, ambulantes e transeuntes discutem o
paradeiro daquele homem. Juntos questionam o papel da polícia militar nas ruas
do centro de São Paulo. Crianças, ambulantes e transeuntes levantam hipóteses
sobre o destino daquele homem e desenvolvem estratégias para ajudá-lo. Homem
com traje social tira a corda do pescoço e desaparece caminhando em meio à
multidão.
Performance e cidade:
O que o corpo pode mover?
Esta é apenas uma
dentre tantas outras histórias de performances que parecem compartilhar uma
inquietação semelhante: como desdomesticar a relação corpo e cidade? Grosso
modo, entendemos que esta domesticação consiste no acionamento das estratégias
assépticas, disciplinares e espetaculares que configuram a relação corpo e
cidade na contemporaneidade. A título de tatearmos este fenômeno, parece
importante evidenciarmos o papel que o chamado fantasma do corpo social
desempenha no processo de domesticação dos corpos cotidianos urbanos. Segundo o
filósofo francês Michel Foucault, tal assombração possui uma função
medicamentosa ao promover o anestesiamento dos corpos cotidianos urbanos.
Diante do medo de perceberem-se alijados do dito corpo social, os corpos
cotidianos urbanos parecem operar em uma espécie de entorpecimento corporal,
uma indistinção entre autopreservação e particularização que, no limite,
configura a relação corpo e cidade como algo próximo de uma experiência
narcótica (SENNET, 2008). Assim,
inferimos que são os chamados corpos cotidianos urbanos que atualizam as
estratégias que segregam, esquadrinham e desertificam as cidades
contemporâneas, por meio da vulgarização da indiferença que varre o espaço
urbano cotidianamente. Este desinteresse absoluto pelo outro urbano pode ser
lido como índice do que chamaremos aqui de anestética corporal urbana. Isto é,
uma forma de embotamento sensório-motor promovido pela sedimentação de uma
série de automatismos cognitivos-perceptivos que caracterizam o empobrecimento
da experiência corporal urbana.
A anestética
corporal urbana consiste na hibridação das estratégias da indiferença,
acionadas para salvaguardar os corpos cotidianos urbanos individualmente. De
modo que os corpos ditos doentes, delinquentes, vadios, ou seja, os corpos
supostamente improdutivos, são expelidos para as margens do espaço urbano
devido aos riscos de contágio que estes pretensamente oferecem à saúde do dito
corpo social. Desta maneira, a anestética corporal urbana deriva do conjunto de
estratégias assépticas, disciplinares e espetaculares que domesticam os corpos
cotidianos urbanos conforme arregimentam o chamado corpo social. O próprio Foucault aponta que é somente na
supressão de todos os corpos individuais que o corpo social aparece nas
sociedades modernas. Isto é, o corpo social não pode ser tomado como a universalização
dos corpos cidadãos. Antes disso, o corpo social é configurado pela
materialização das estratégias do poder que domesticam, neste caso, os corpos
cotidianos urbanos. Logo, se estivermos
de acordo que o que estamos chamando aqui de anestética corporal urbana pode
ser lida como um índice da domesticação da relação corpo e cidade, qualquer
investimento no desmantelamento desta domesticidade, talvez, precise se colocar
diante de perguntas como, por exemplo: como tornar o corpo cotidiano urbano
sensível à presença do outro nele mesmo? De que modo uma outridade urbana
deixaria de representar o contágio da ameaça, ao inaugurar a promessa de outras
cidades possíveis?
Se atentarmos para certa genealogia da arte da
performance, encontramos desde o final do século XIX performadores interessados
em ativar a relação corpo e polis, ao experimentarem uma alteridade radical com
o outro urbano através das chamadas errâncias urbanas
(JACQUES, 2012). Seja como uma provocação frente ao processo de modernização
das cidades europeias e brasileiras na passagem do século XIX para o século XX,
seja como uma denúncia dos regimes ditatoriais que assolaram a América Latina e
o Leste Europeu em meados do século XX. Ou então, como um questionamento à
estabilização do mercado de arte no eixo Europa-Estados Unidos neste mesmo
período e, mais recentemente, como crítica ao processo de gentrificação do
espaço público que tenciona a vida urbana neste começo de século XXI. Ao longo
dos últimos cem anos, pelo menos, performers podem ser lidos como errantes urbanos,
assim como, a performance pode ser entendida como errância urbana.
Desvio, Desvario, Deriva:
– O termo performance é errante. A título de
exemplo, em uma rápida consulta ao Google
Notícias Brasil, a palavra aparece no cabeçalho de notícias como: Substância
usada por Tyson Gay e Powell melhora performance, CEO da Coca-Cola insatisfeito
com a performance da empresa, Julho é mês de performance artística no Parque
Dona Lindu no Recife, Mulher de Diego Cavalieri elogia performance do marido na
cama, Honda lança pacote de
performance para o Accord Coupe, ou
ainda, Ativistas fazem performance contra consumo de carne de cães na China.
Como podemos observar, a palavra performance aparece anexada a uma pluralidade
de agentes em contextos diversificados. Embora frisemos que estamos
interessados na arte da performance a pergunta “o que é performance?” ainda nos
parece uma falsa questão (FABIÃO, 2009).
Isto porque esta não pode ser definida com uma única resposta. A performance
é indefinível por natureza. Pelo menos no que diz respeito ao campo lexical, a
indefinibilidade ainda tem sido a tática de resistência da performance.
Contudo, é importante salientarmos que a indefinição do termo não está comprometida
com a produção de nenhum tipo de obscurantismo, ou então, com alguma espécie de
hermetismo. Pelo contrário. Acreditamos que é justamente através desta resistência
a definições prontas que a performance convoca a oxigenação do pensamento. Ao
incitar o desmanche dos binarismos que cerceiam, estancam, censuram o ato de
pensar, a performance nos convida à experimentação da erraticidade imanente ao
pensamento. A própria reflexão parece ser da ordem da errância. Desta forma, ao
nos confrontarmos com a pergunta: “Afinal, o que é performance?”, convém
lembrarmos que a performance é errante e, portanto, avessa às armadilhas que caracterizam
as soluções finais. –
Ao errarem para
além dos muros das instituições artísticas, performeiros parecem estar
interessados em experimentar o corpo em deslocamento pela cidade, assim como, a
cidade em deslocamento pelo corpo, a fim de testar a emergência do que chamamos
de corpo urbano errático (MARQUES, 2013). Ao questionar: o que o corpo pode
mover no espaço urbano? Ou ainda, que corpo pode mover na cidade? O corpo
urbano errático promove um questionamento ético-político e estético das cidades
contemporâneas (FABIÃO, 2008). De acordo
com o crítico e curador de arte francês Nicolas Bourriaud, podemos admitir a
hipótese de que o corpo urbano errático tem promovido um deslocamento na
historiografia da arte deste início de século, semelhante àquele provocado pelo
readymade duchampiano nos primórdios do século passado. Isto
pois, o corpo urbano errático é aquele que desloca os espaços da artisticidade
ao mesmo tempo em que potencializa a politicidade do corpo. Ele emerge como a
carne disruptora do fantasma do corpo social, ou seja, como um operador de
resistência às estratégias assépticas, disciplinares e espetaculares ativadas
pelos corpos cotidianos urbanos. Para tanto, o corpo urbano errático
experimenta um corpo a corpo amoroso com a cidade através de uma apreensão
sensível do espaço urbano, para aludirmos aos dizeres do filósofo Michel de
Certeau, ou dito de outro modo, o performador como errante urbano é aquele que
está interessado em investigar a performance como errância urbana como
possibilidade de poetizar o urbano, para utilizarmos uma expressão do artista
brasileiro Hélio Oiticica.
Performance e Precariedade:
Performances da precariedade
Precariedade da performance
A performance como
errância urbana muitas vezes pode ser confundida com um ato de solidariedade na
abjeção. Segundo o performeiro mexicano Guillermo Gómez-Peña, o performador
como errante urbano se reconhece no olhar daqueles que vivem nas esquinas da
sociedade, os chamados órfãos sociais. Gómez-Peña acredita que a performance
como errância urbana é um mergulho nos oceanos da miséria na qual nada a
população pobre ou em situação de rua. O que marca a diferença entre uns e
outros é o nível de profundidade do mergulho na realidade social (2005, p.
210). Não por acaso, ainda de acordo com
Guillermo Gómez Penã, a reciclagem seria o principal modo de produção do
artista da performance (2005, p.203). Embora o performer como errante urbano
erre por vontade própria, este parece emular as práticas daqueles que erram por
necessidade, daqueles que são soprados para a opacidade pela fantasmagoria do
corpo social. A possível associação entre a performance como errância urbana e
a reciclagem pode ser lida como uma alusão aos outrora conhecidos como
trapeiros e aos quais hoje chamamos de catadores, ou ainda, sucateiros. Corpos anoitecidos
que caminham contra os ventos do progresso e amanhecem ao recolher o lixo no
qual tropeçam. Corpos cuja materialidade é tida como desimportante, cujas vidas
não são consideradas vidas e aos quais a filósofa estadunidense Judith Butler
chamou de corpos abjetos.
Ainda que a autora
nos ajude a perceber o obscuro, ela o faz com a acuidade de quem sabe que é
preciso ser prudente com o excesso de luminosidade, pois esta também costuma
ser produtora de invisibilidades. Butler evita oferecer-nos exemplos de corpos
abjetos, o que entendemos tratar-se de um determinado cuidado de quem faz ver
sem cegar pelas luzes, de um certo esforço para não incluir para excluir
aqueles que já padeceriam na exclusão. Contudo, uma conversa com a pesquisadora
brasileira Christine Greiner auxilia a testarmos algumas pontes entre os
chamados corpos abjetos e o performador como errante urbano. Em seu livro O Corpo em Crise: novas pistas e os
curtos-circuitos das representações (2010), Greiner atenta para o fato de
que assim como as partes baixas do corpo, as partes baixas das cidades são
costumeiramente intocáveis. Em seguida, afirma: “o lúmpen é o abjeto de todas
as classes sociais.” (GREINER, 2010).
Em uma possível
tradução do alemão para o português, lúmpen significa ‘homem trapo’. Uma alusão
ao termo foi feita por Karl Marx e Friedrich Engels em A Ideologia Alemã (1845), quando os filósofos alemães teriam empregado
pela primeira vez o termo lumpemproletariado (2011, p.70). Para os autores,
estes representam uma ameaça para a consciência revolucionária do proletariado
e foram descritos por Marx no 18 de
Brumário de Luís Bonaparte (1874) como vagabundos, ex-presidiários,
saltimbancos, delinquentes, jogadores, tocadores de realejo, escrevinhadores,
trapeiros, mendigos, dentre outros. O autor os definia ainda como uma massa
indefinida, desintegrada (2011, p. 97). Desta forma, o chamado
lumpemproletariado consiste no avesso da fantasmática do corpo social. Os
corpos abjetos aos quais evitaríamos perceber, a fim de não encararmos o que
eles dizem a respeito de cada um de nós. E, quando surpreendentemente o
fazemos, muitas vezes parecemos não nos assustarmos com o reflexo da nossa
desumanização. De modo que nos tornamos aqueles que aparentam não ter mais
força de estar à altura de nossa fraqueza, uma vez que permanecemos
constantemente na fraqueza de cultivar apenas a nossa força (PELBÁRT,2000).
Outra história de performance
Ou
Outra história pipa,
Outra história solta.
Um homem caminha
pela rua e recolhe um lúmpen do chão como um trapo. Coloca-o nos ombros e
adentra sala de exposição de um museu de arte moderna. Apoia o corpo abjeto no
cubo branco e traça uma linha de sujeira nas paredes. Em seguida, deixa o museu
caminhando ao lado do lumpemproletário.
De acordo com a
discussão proposta aqui, acreditamos que estes corpos sujos, fétidos e
envelhecidos se contrapõem à materialização da idealização do corpo cotidiano urbano.
Assim, o performador como errante urbano tece um elogio às performances
corporais da precariedade, uma vez que estas configuram uma espécie de triunfo
do corpo que instabiliza as estratégias assépticas, disciplinares e
espetaculares que domesticam a relação corpo e cidade. Isto é, a performance
como errância urbana pode ser lida como uma operadora de resistência ao
convocar a possibilidade de criação na escassez. Neste sentido, aquilo que é descartado pelo
espectro do corpo social é coletado pelo corpo urbano errático, de forma que
este experimenta estes materiais descartáveis encontrados ao acaso pela cidade
como extensões corporais. Plástico, papel, compensados, jornais, lata, espumas
e arames assumem uma relação de contiguidade com o corpo urbano errático, por
meio de um certo embrulhamento corporal. Assim, aquilo que antes foi utilizado
geralmente para embalar produtos, ao ser moldado como uma extensão do corpo
urbano errático passar a proteger a vida.
Ao errar, coletar e reciclar o corpo urbano errático coloca uma questão
ética, estética e política para as cidades contemporâneas, ao nos sensibilizar
para uma reflexão sobre a multiplicidade de significados imanentes a vitalidade
daquilo que é descartável, daqueles que são marginalizados. Através da metamorfose
da sobrevivência em forma de existência, os corpos urbanos erráticos
transformam o biopoder em biopotência.
Entretanto, a relação de indistinção do corpo urbano errático com esses
materiais guarda uma ambiguidade. Nessa proximidade com jornais, sacolas
plásticas e papelão, por exemplo, o performeiro como errante urbano aparece
desaparecendo na poluição de determinadas paisagens urbanas. De tal modo, o
duplo invisibilidade- vulnerabilidade funciona tanto como possibilidade de
proteção quanto de exposição às inúmeras formas de violência a qual o dito
lumpemproletariado está assujeitado cotidianamente nas cidades contemporâneas.
Contudo, em
detrimento de recorrer a temas como os limites corporais, a autobiografia e o
pós-humano em busca do risco, ou ainda, da liminaridade costumeiramente
associada às ações performáticas, a performance como errância urbana incita uma
perda de si mesmo nos espaços da sub-humanização, da caducidade e da
precariedade ao camuflar-se em meio aquilo que é excretado, alijado, descartado
pelo fantasma do corpo social – restos, cacos, detritos. Onde a sociedade do
desperdício decreta o fim, o corpo urbano errático emerge como a possibilidade do
começo. Ao descentralizar as discussões do âmbito do individual, do econômico e
do privado, a performance como errância urbana potencializa o coletivo, o
público e o político. Para tanto, o performer como errante urbano investe na
precariedade da performance ao desafiar a moral pela depravação, a lógica pelo
desvio e o socioeconômico pela vagabundagem, conforme instabiliza a anestética corporal
que caracteriza o individualismo urbano ao experimentar uma alteridade radical
com o outro (FABIÃO, 2011). Em alguma
instância, inferimos que este escancaramento para a outridade urbana é uma
insurgência contra a inoperância do comum que rege a fantasmagoria do corpo
social e assombra as sociedades modernas.
Performance e comum:
Mover com
Com mover
Segundo Christine
Greiner, podemos entender que o outro é uma impropriedade, ou ainda, aquilo que
não é próprio. Desta maneira, é na possibilidade de um escancaramento para o
outro que damos a ignição necessária para os processos de comunicação que
configuram uma comunidade. Através de uma citação ao filósofo italiano Roberto
Espósito, a autora assinala os dois radicais que compõem a etimologia da
palavra communitas, termo que significa justamente comunidade em
latim. Cum anuncia a presença de um
outro além de si, enquanto Munus
possui pelo menos três significações: onus,
officium e donum, sendo que este último pode ser traduzido como dever, dívida,
ou então, obrigação. Logo, uma comunidade não é constituída por nenhuma
essência, ou ainda, qualquer substância. A comunidade é um tipo de compromisso
no qual um doa-se incondicionalmente ao outro. Neste sentido, a comunidade é um
acontecimento no qual a ausência de propriedade, de identidade, de domínio de
si expõe as condições de uma política futura. O que há de verdadeiramente comum
na comunidade é o munus, ou seja, o
comprometimento com o outro (GREINER,
2013). Ainda citando Espósito, Christine Greiner afirma que a experiência da
comunidade apresenta a possibilidade de ser arrastado para fora de si como
forma de experimentar a vitalidade imanente à irrupção do desconhecido, ao
encontro com o inesperado.
Assim, chamamos a atenção
para o fato de que este extravio de controle sobre si consiste em um princípio
ético para o performador como errante urbano. Para ele perder-se também é
caminho. A performance como errância urbana consiste justamente nesta arte de
extraviar-se de si, de perder-se pelas cidades, de abrir-se para um encontro
fortuito com o outro urbano, de modo que talvez possamos ouvir nos passos do
corpo urbano errático algo como os murmúrios do comum. Pois, o performer como
errante urbano é aquele que desfaz em certa medida a si mesmo, através de uma
exposição radical a outridade urbana, ou seja, por meio de uma experimentação
de modos de ser em comum. Neste viés, Greiner cita ainda o filósofo Jean-Luc
Nancy, de acordo com o qual o Cum é
aquilo que nos lança frente a frente
com os outros. Investigar a performance
como errância urbana exige a experiência de ser com, ou ainda, a necessidade de
ser comovido no mais amplo sentido do termo – mover com, com mover, mover-se
com o outro (AGRA, 2012).
Portanto,
acreditamos que a performance como errância urbana não se enquadra naquilo que
as chamadas Arte Cidadã e Arte Pública convencionaram chamar de intervenção urbana,
ou em alguns casos, de interferência urbana. Ao invés disso, o performer como
errante urbano propõe a realização daquilo que Maria Beatriz de Medeiros chama
de Composição Urbana (MEDEIROS, 2008). Para a teórica da performance
brasileira, Composições Urbanas implicam na possibilidade de desnormatizar o
corpo cotidiano urbano através da instauração de processos nomadizantes, isto
é, trajetos poéticos nos quais podemos nos desreificar ao nos tornarmos
errantes, conforme transfazemos os caminhos do outro. Composições Urbanas
instabilizam a primazia do sentido da visão que nos orienta pelo espaço urbano,
através da experimentação de alterações de estados corporais ao afetarmos e
sermos afetados no corpo a corpo com a cidade. Para além de um debate
terminológico, o que parece estar em jogo no uso do conceito de Composição
Urbana é a tentativa de tirar a questão da alteridade da sombra da cidadania.
De forma que a diferença não se coloque apenas como um axioma democrático, à
medida que a performance como errância urbana seja o exercício de uma paixão
pela incerteza criadora, no qual a diferença esteja comprometida com a
alteridade necessária para a produção de singularidade. (ROLNIK, 2014). Nestes
casos, trata-se daquilo que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamou de
singularidade qualquer. Performances como errâncias urbanas são manifestações singulares,
manifestações do qual-quer, uma vez que estas abrem mão de qualquer
representatividade, de qualquer identidade, de qualquer território, para se
constituírem nos fluxos de alteridade produtora de singularidades. Performers
como errantes urbanos podem aparecer desaparecendo em qualquer lugar, a
qualquer hora, podem ser qualquer um. Deste modo, as singularidades quaisquer
podem ser entendidas como linhas de fuga diante da ação do poder instituído, ao
denunciarem a crise da política representativa moderna (AGAMBEN apud GREINER,
2013).
O performador como
errante urbano é aquele que exercita um certo desmanchamento de si com a
prudência necessária daquele que se compõe, decompõe e recompõe sempre em
correlação com o outro urbano. Portanto, a performance como errância urbana
desmantela a noção de um sujeito que dispõe de uma metodologia para agir sobre
um objeto. Ao contrário. Ela propõe uma inversão dos entendimentos
convencionais de metodologia, uma vez que ela pressupõe um hodós metá em detrimento de um método propriamente dito, ou seja,
como não há um caminho dado a priori, a performance como errância urbana se
configura como um caminho que só se faz caminhando. Através dos movimentos de
territorialização, desterritorialização e reterritorialização imanentes a
qualquer errância, o performador como errante urbano executa um árduo exercício
sobre si ao testar incessantemente modos de se pôr com, de com pôr com o outro:
o outro em si, o outro urbano. Por último, mas não menos importante,
gostaríamos de esboçar uma questão. Para além dos legítimos pressupostos
ativistas que parecem pautar as discussões em torno da relação corpo,
performance e cidade, o performeiro como errante urbano e a performance como
errância urbana parecem anunciar a possibilidade de um afetivismo. Nestes tempos em que somos mobilizados pelo
medo, pelo ressentimento e pela indiferença que tonificam nossa anestética
corporal urbana, compartilhamos aqui uma inquietação: se a política pode ser
entendida como a arte de afetar os corpos, um dos desafios políticos do nosso
tempo não seria nos lançarmos na errância imprescindível para a revitalização
dos nossos afetos? (SAFATLE, 2013). Perder o sentido, para abrir os sentidos.
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visitas dadaístas, deambulações, experiências, derivas, delirium ambulatorium, fluxus
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